SOLENIDADE DA ASSUNÃ?Ã?O DE NOSSA SENHORA 21-08-2016

REFLEXÃO HOMILÉTICA PARA A ASSUNÇÃO DA VIRGEM MARIA
Mateus Domingues da Silva OP*
Os vínculos entre pais e filhos são únicos. O vínculo entre uma mãe e seu filho é de uma intensidade indescritível tanto biológica como afetivamente. Com Jesus, muito provavelmente, não foi diferente; há vínculos fortes entre Jesus e seus pais e, provavelmente, havia algum vínculo mais forte ainda e incomparavelmente intenso entre Jesus e sua mãe. Algo fundamentalmente constitutivo na personalidade de Jesus, sem nenhuma dúvida. O que isso importa na história da salvação? Absolutamente nada, a não ser para reafirmar a humanidade de Jesus. Ele, verdadeiramente homem, foi efetivamente filho de pais humanos, nascido realmente de uma mulher humana. O Novo Testamento, no geral, não se interessa pelas origens familiares de Jesus – provavelmente porque os autores as ignoravam por completo. As duas exceções são os evangelhos segundo Mateus e Lucas. No entanto, mesmo os evangelistas Mateus e Lucas não querem dar azo à imaginação, não se interessando por especulações vazias. Tão ignorantes das origens familiares de Jesus que os outros autores do Novo Testamento, estes dois evangelistas não querem reconstituir nem o nascimento nem a infância de Jesus. Eles querem, nos relatos evangélicos da “infância”, falar de outra coisa, a saber: da crucifixão, morte, ressurreição e ascenção de Jesus. Assim, todas as coisas que Mateus e Lucas contam sobre José, Maria e as circunstâncias do nascimento de Jesus não têm valor histórico nenhum e não podem ajudar em nada o historiador na aventura de buscar descobrir dados biográficos de Jesus. Não obstante, em Mateus, a figura simbólica de José nos apresenta o ideal de homem justo e obediente aos desígnios de Deus, sensível aos sinais de Deus e que, assim como outro ilustre José – o filho de Jacó –, muda-se, ainda que temporariamente, para o Egito. Da mesma maneira, Lucas projeta em Maria a figura do fiel que ouve a palavra de Deus e se deixa transformar pela esperança que tal palavra suscita; é o paradigma de discípulo e de Igreja. “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu” (Lc I, 45).
A partir do pouco que Lucas apresentou sobre Maria, a Igreja católica e as Igrejas ortodoxas inflacionoram a figura de Maria. O Concílio Vaticano II soube equilibrar as coisas e colocar Maria no seu devido lugar. É preciso reler o evangelho segundo Lucas e aprender a desenvolver uma mariologia minimamente coerente com os dados bíblicos e patrísticos e que leve suficientemente a sério tanto a história como a teologia. Dessa maneira, aprendemos que “muito mais felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põe em prática” (Lc 11, 29). Trata-se da mesma Maria que, segundo Lucas nos Atos dos Apóstolos, fez parte da Igreja nascente em Jerusalém. A bem-aventurança da mãe de Jesus consiste, segundo Lucas, não propriamente na maternidade de Jesus, mas no fato de ter sido uma discípula exemplar.
No relato evangélico de hoje (Lc I, 39-56), Maria, trazendo consigo Jesus, representa a Igreja jovem e nascente; ela sai em missão e se encontra com a idosa Isabel que, mesmo envelhecida, traz consigo uma criança, João Batista, o qual representa, por sua vez, os profetas do Antigo Testamento. Isabel representa os judeus de todos os tempos, assim como Maria os cristãos de todos os tempos. É emblemático notar que Lucas escolheu duas mulheres para representar a Igreja e Israel – não é exagero chamar Lucas de “o evangelista feminista”. Ademais, o novo e a novidade são acolhidos pelo antigo e pela antiguidade. Estabelece-se um vínculo “de sangue” entre Jesus e João Batista, entre a Igreja e Israel, entre Maria e Isabel, entre cristãos e judeus. Maria, isto é, a Igreja, assimila e assume as alegrias e as esperanças, as dores e as tristezas dos judeus de todos os tempos, expressando isso isso através de seu Magnificat. A primeira leitura do dia de hoje (Ap 11, 19; 12, 1.3-6.10) nos faz lembrar que a Igreja é como uma mãe que dá à luz um filho, a saber: Jesus ressuscitado.
Trazer o Cristo ressuscitado consigo e dar à luz o próprio Cristo Jesus significa que devemos nos configurar a Jesus de Nazaré. Com ele, há uma nova humanidade. Se uma velha humanidade existia, com Jesus tudo é novo e é renovado. A ressurreição de Jesus nos faz irmãos e irmãs na nova humanidade. Com efeito, Jesus de Nazaré é o novo Adão, o primogênito de uma nova humanidade e nosso irmão mais velho, aquele que faz gerar – com sua vida, sua humanidade e sua cruz – uma nova humanidade. Com incrível liberdade interior, Jesus pregou um reino de amor e liberdade, um Deus que é um pai bondoso e clemente, um reino de Deus que consiste no reinado da salvação e da misericórdia, do perdão e da reconciliação; a pregação de Jesus foi rejeitada e, por conta disso, Jesus foi excomungado, condenado, executado, crucificado, morto e sepultado. Este Jesus crucificado, rejeitado pela religião e condenado pela ordem, se manifesta como realmente vivo em Deus e exaltado como Cristo e Senhor; ele se comunica como glorificado e ressuscitado para os discípulos fieis. A vida nova em Jesus nos alimenta na esperança de que nós também temos o mesmo fim de Jesus crucificado: Deus. O Deus de Jesus é nosso destino, nossa alegria; a pregação de Jesus, sua boa-nova, seu evangelho, é nosso guia, nosso norte; Jesus resssuscitado é nossa liberdade, nossa luz, nossa esperança. Precisamos de esperança e liberdade sempre; no contexto brasileiro atual, em que um golpe de Estado perpetrado pelo establishment está em vias de ser concluído e o sonho de um Brasil com o mínimo de responsabilidades sociais e com os direitos humanos está para ser jogado fora, a esperança e a liberdade são essenciais. Espero – na verdade, eu anseio mais que espero – que o golpe não se conclua; se for concluído, precisaremos de iluminação e de esperança para lutar por liberdade política e justiça social. Da mesma maneira, enquanto discípulos e discípulas do Cristo, tanto a nível local como a nível global, precisamos da convicção confiante de que o Deus de Jesus “pôs tudo debaixo de seus pés” (I Cor 15, 27) para juntos, como Igreja, fazer nascer o filho, isto é, o próprio Jesus ressuscitado. Como nos recorda a segunda leitura (I Cor 15, 20-27), todos já tivemos nossos “inimigos” destruídos – inclusive a morte. Como homens e mulheres novos e novas precisamos, na Igreja, nos renovar e nos reformar, assim como pensa, fala e age o papa Francisco, nos exorta e nos ordena o Concílio Ecumênico Vaticano II e nos impele o Espírito d’Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos – o mesmo Espírito que mora em nós e nos impele a chamar alegremente Deus de “pai”, isto é, a nos chamar alegremente de irmãos e irmãs.
*Mateus Domingues da Silva, frade dominicano, é islamólogo, pesquisador em história da física medieval e em história da filosofia árabe e membro do IDEO (Institut Dominicain d’Études Orientales) do Cairo.