SOLENIDADE DE CRISTO REI DO UNIVERSO 20/11/2016

HOMILIA PARA O EVANGELHO PROCLAMADO NO 34o DOMINGO DO TEMPO COMUM – WSOLENIDADE DE CRISTO REI DO UNIVERSO (Lc XXIII, 35-43)
Para ser franco, devo afirmar que, com minhas preferências republicanas e inclinações à esquerda, não tenho nenhuma predileção particular pela realeza e que, em si, o título de rei aplicado a Jesus não é aquele que mais inspira minha fé. Foi somente em 1925 que o bispo de Roma na época, o papa Pio XI, introduziu esta festa no calendário litúrgico. Tinha suas razões: em uma Itália que começava a ser dominada pela força diabólica da extrema-direita, tendo Mussolini à sua frente, convinha lembrar que o único Senhor e Rei é, efetivamente, Jesus de Nazaré. Pio XI foi profético no sentido de que, na década seguinte, outro representante demoníaco da direita se fez proclamar na Alemanha, Führer. Proclamar Jesus como rei do universo, o único e verdadeiro Führer, era, naquele contexto, algo escandalosamente subversivo.
As passagens mais antigas do Novo Testamento atestam que Jesus já foi desde cedo chamado “Filho de Deus”. Tal título era, na sua origem, usado para designar os reis de Israel e de Judá. Com efeito, esperava-se entre os contemporâneos de Jesus a restauração da linhagem de Davi e o restabelecimento da soberania davídica sobre as doze tribos de Israel. Ser “filho de Deus” implicava, assim, ser “filho de Davi”. A partir disso se compreende o esforço dos evangelistas Mateus e Lucas em forjar uma ascendência davídica para José. No entanto, os primeiros cristãos nunca reivindicaram para Jesus – nem o próprio Jesus para si – a pretensão de uma restauração anacrônica e infantiloide de um distante e praticamente legendário reino de Davi. “Filho de Deus” foi logo interpretado como sendo a melhor fórmula para apresentar a realidade de Jesus: a manifestação de Deus junto à humanidade e o representante da humanidade junto a Deus. Assim, enquanto ressuscitado, o título “Filho de Deus” não quer enviar às origens de Jesus, mas às suas prerrogativas e autoridade. Jesus ressuscitado age como Espírito de Deus e no Espírito de Deus, sendo que por meio dele, o Espírito do Pai se faz presente em nós e tal presença operante e operativa é eterna, para além do tempo. Assim, no Espírito que procede do Pai e para a glória do Pai, Jesus é definitivamente o Senhor. Passagens mais tardias do Novo Testamento testemunham que no século I d.C. já se atribuía a Jesus ressuscitado todas as prerrogativas de Deus. Ora, a realeza e o senhorio são atributos divinos na tradição judaica – assim como também na tradição islâmica em que “o rei” ou “o soberano” (al-malik, الملك) é um dos 99 nomes de Deus. Logo, pode-se aplicar a Jesus fórmulas como “rei das nações” ou “rei do universo”. Uma vez que Jesus ressuscitado se revela aos discípulos como “glorificado por Deus” e “exaltado à direita de Deus”, a consequência de sua realeza é óbvia.
Ter isso em mente é fundamental na medida em que possibilita aos cristãos – que desde o século I diante dos tribunais romanos proclamavam que Jesus é Senhor – uma liberdade única. Proclamar e viver essa proclamação de fé custa caro e, por vezes, demasiadamente caro, não apenas em tempos de perseguição, mas também e principalmente em tempos de conforto; toda vez que se recusa a adorar o deus do momento – e como tais deuses são numerosos – as consequências podem ser fatais! Então, não é exatamente pelas fórmulas usadas ou pelas imagens que as fórmulas apresentam que se deve pagar com sofrimentos e incompreensões e eventualmente com a vida e a morte, mas é pelo próprio Jesus Cristo, em pessoa, e pelo que ele manifesta: seu Deus que é Deus conosco, Deus feito homem.
Curiosamente, Jesus proclamou sempre o reino de Deus, mas nunca qualificou Deus como “rei”. O reino de Deus segundo Jesus é, na minha humilde – talvez ousada – leitura, um reinado sem rei. É verdade que Jesus ao ser identificado com a figura apocalíptica de “Filho do homem” traz consigo algumas qualidades privativas da realeza, como, fundamentalmente, o poder e o direito de julgar. Mas Jesus não leva isso a sério. Ele não quer julgar, mas manifestar Deus, Deus que salva, Deus que é salvação. Nesse sentido, o relato evangélico de hoje pode nos ajudar a compreender melhor o reino do qual Jesus se fez arauto e embaixador e do qual o queremos fazer rei. Se ainda hoje insistimos em chamar Jesus de rei, é preciso levar em conta que ele nunca, em sua vida pública, foi louco o suficiente para se proclamar rei do que quer que fosse. A única menção a sua proclamação como rei que encontramos nos evangelhos se refere à sua condenação à cruz e à tortura que precedeu sua morte. De acordo com os evangelistas, a inscrição “Jesus de Nazaré, rei dos judeus” se deve ao peso de consciência de Pilatos que não estava 100% convencido da culpa de Jesus. No caso de Jesus, não havia provas – mas havia convicção. Na minha modesta e despretensiosa interpretação, o ato de Pilatos foi uma piada de mau gosto que o governador romano fez contra Jesus. Da mesma maneira, como objeto de deboche, Jesus é tratado pelos soldados e pelos que sentiam prazer em ver o sofrimento daquele condenado. Se mesmo assim, insistimos ainda em chamar Jesus com o título anacrônico de “rei”, é preciso lembrar que, no relato evangélico de hoje, seu trono é a cruz, seu cetro também é a cruz, sua coroa é de espinhos e seus súditos o debocham o tempo todo. Humano, demasiadamente humano para ser rei... Apenas um ladrão anônimo, crucificado e condenado à morte, um colega de cruz, foi capaz de apreender a essência do próprio Jesus, contemplando naquele absurdo a pessoa de Jesus. O ladrão crucificado que o interpela não vê em Jesus um superior, mas um irmão, um camarada, um companheiro, um igual; por isso não lhe diz: Majestade ou Senhor, ou Mestre ou ainda Sua Santidade, Sua Beatitude, Sua Eminência, sua Excelência, Monsenhor ou Reverendíssimo Pai/Padre... Não! Ele o chama simplesmente de “Jesus”: “Jesus, lembra-te de mim quando vieres em teu Reino”. Quanta esperança depositada! Eu não me imagino no ápice do meu sofrimento, na humilhação pública e nos últimos instantes de minha vida, ser capaz de encontrar esperança em outro igual a mim, também condenado, também humilhado, também entre a vida e a morte, e encontrar nele sentido para confiar e morrer em paz. É mais difícil ainda prever a imaginação criativa e criadora do sempre ousado e surpreendente Jesus em prometer ao ladrão desconhecido o que estava além de quaisquer expectativas: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. E foi assim que um criminoso condenado se tornou o primeiro cidadão no reino de Jesus.
MATEUS DOMINGUES DA SILVA OP vive no convento dominicano do Cairo, onde é pesquisador em história da filosofia árabe e em islamologia.