IV DOMINGO DO ADVENTO 18-12-2016

REFLEXÃO HOMILÉTICA PARA O 4º DOMINGO DO ADVENTO – ANO A (18 de dezembro de 2016).

DOMINGUES DA SILVA OP, Mateus.1

«No mesmo movimento em que o Pai gera seu Filho Unigênito em mim, gero-o eu de volta para dentro do Pai.» (Mestre Eckhart OP, 1260-1328).2

 

               Nunca é demasiado repetir que a finalidade dos Evangelhos não é nos informar sobre as circunstâncias materiais da concepção de Jesus nem sobre a história de seus familiares; os evangelistas – o que inclui evidentemente Mateus – não têm, na verdade, nenhuma ideia sobre. Relatos como os dos evangelhos da infância, se lidos de maneira literalista, podem facilmente fazer nos perder no superficial. Se não houvesse uma sexta-feira santa, isto é, um momento da crucifixão e morte de Jesus, nem um domingo de Páscoa, isto é, um instante a partir do qual Jesus crucificado passou a se manifestar como vivo e glorificado, nenhum evangelista poderia dizer nada sobre o nascimento de Jesus; os autores sagrados estão íntima e existencialmente convencidos de que Jesus crucificado está vivo. O fato de Jesus ter sido rejeitado e excomungado pela religião, condenado e morto pelo establishment e pela ordem, glorificado e exaltado por Deus, é muito mais importante do que qualquer narração sobre as origens genealógicas e familiares do Cristo. Na verdade, Jesus teria mesmo sido rapidamente esquecido, não fosse o fato de que, uma vez condenado e morto na cruz, foi levantado dentre os mortos e está verdadeiramente vivo, se manifestando como Vivo e Senhor. Feita essa observação inicial, o relato evangélico de hoje (Mt I, 18-24) nos permite apreender, de maneira mais intensa, o sentido do advento. O Deus criador que virá através de Jesus Cristo, Ele já veio, no passado, através do mesmo Jesus; por meio do próprio Cristo ressuscitado, Deus também vem, no tempo presente. O Deus de Jesus é Deus que é Deus em nós, Deus conosco.

 

                Dito tudo isso de outra maneira, se no natal celebramos o nascimento de Jesus de Nazaré sem referência à Páscoa, passamos ao largo do sentido e do alcance da festa. Com efeito, o que os textos evangélicos nos relatam é o início da vida daquele que  foi crucificado e ressuscitado contado à luz da Páscoa. Na sua carta aos Romanos, na segunda leitura de hoje, o apóstolo Paulo afirma claramente que Jesus é o Filho de Deus na Páscoa graças ao evento morte-ressurreição: “autenticado como Filho de Deus com poder, pelo Espírito de Santidade que o ressuscitou dos mortos, Jesus Cristo, Nosso Senhor.” (Rm I,4); não que tenha existido um instante em que Jesus não fosse o Filho de Deus antes de sua morte ou que Jesus só se tornou “filho de Deus” na cruz e na ressurreição – não, não é isso! De toda maneira, o que Paulo e os testemunhos mais antigos do Novo Testamento sublinham é que a filiação divina de Jesus tem, como primeiro e mais importante ponto, sua razão de ser, na morte e ressurreição de Jesus, de sorte que o Apóstolo escreveu: “Segundo a carne foi descendente de Davi” (Rm I,3), e Mateus pode inclusive afirmar que a profecia de Isaías ao rei Acaz, que se faz presente na primeira leitura de hoje: “Eis que uma virgem [i.e., uma jovem] conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco.” (Is 7,14; Mt 1,23), realiza-se no Cristo crucificado. Não é por acaso que Mateus criou um relato do nascimento para expressar esta dupla identidade do Jesus ressuscitado expressa em termos de dupla filiação: Filho de Davi por José (v. cf. Mt 1,20b), que simboliza o povo de Israel e transmite a Jesus sua filiação humana, e Filho de Deus por Maria, que representa a Igreja em que é engendrado o Cristo pelo Espírito Santo e que transmite a filiação divina de Jesus (v. cf. Mt 1,20c).

 

                    À luz do evento morte-ressurreição, Mateus – assim como Lucas – desenhou, tal qual uma obra de arte, as circunstâncias do nascimento de Jesus. A concepção virginal da mãe de Jesus – chamada nos sinóticos e nos Atos dos Apóstolos de “Maria” – foi interpretada de diversas maneiras ao longo da história. Houve quem visse aí a condenação ao sexo; houve também quem visse a liberdade de Deus que ultrapassa as leis naturais; outros já viram em Jesus o novo Adão, o qual, assim como o velho Adão, foi engendrado unicamente pela vontade soberana de Deus; ou ainda – minha interpretação favorita – trata-se simplesmente de sublinhar a extrema delicadeza de Deus, que  se faz carne em nós sem jamais violar nossa liberdade e o contexto em que estamos inseridos.  Assim, a peça literária de Mateus sobre a genealogia e a concepção de Jesus concerne a todos nós, pois toda pessoa cristã está, por assim dizer, «grávida»  do Cristo por meio do Espírito Santo para transmiti-lo ao mundo. É também a missão dos cristãos comunicar e fazer manifestar um Deus que é somente Deus na medida em que é Deus conosco. Eis aqui o sentido da oitava do natal de Jesus que celebraremos por oito dias a partir do próximo dia 25... O Deus que professamos em nossa fé é um Deus que é conosco, isto é, em nós? Estamos dispostos a partilhar Deus? O filósofo e pregador João Eckhart, o famoso Mestre Eckhart, um dos mais ilustres nomes nos oitocentos anos da Ordem dos irmãos pregadores e na história da teologia cristã, tem toda razão: «Somos um único Filho que o Pai gerou eternamente da escondida escuridão da eterna escondidade, mas permanecendo no primeiro princípio da primeira pureza que lá é a plenitude única de toda a pureza. […] Desta pureza ele me gerou eternamente como o seu Filho unigênito, na imagem da sua eterna paternidade, para que eu seja Pai e gere aquele do qual eu fui gerado. […] No mesmo movimento em que o Pai gera seu Filho Unigênito em mim, gero-o eu de volta para dentro do Pai» (2). Estamos dispostos a levar às últimas consequências o fato de que geramos o Filho único de Deus e somos, portanto, pais e mães de Deus?

 

Mateus DOMINGUES DA SILVA é frade pregador e islamólogo, membro da equipe do IDEO do Cairo – Institut  Dominicain d’Études  Orientales  du  Caire).

 

ECKHART, Meister. Die deutschen Werke I. Stuttgart: Kohlhammer, 1958, pp. 518 e 519.