SOLENIDADE DO NATAL DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO 25-12-2016

Natal do Senhor
25 de dezembro de 2016
Ó Deus, que admiravelmente criastes o ser humano e mais admiravelmente restabelecestes a sua dignidade, dai-nos participar da divindade do vosso Filho, que se dignou assumir a nossa humanidade. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo.
(Oração da coleta, Missa do dia de Natal, Missal Romano)
Na oração da coleta (oração que, após o ato penitencial, o presidente da celebração dirige ao Senhor) da missa do dia de Natal, encontramos a manifestação da alegria da Igreja, que agradece o Senhor pela Encarnação de seu Filho. Após quatro semanas de atenção e de reforçada caridade, no tempo do Advento, os cristãos se alegram em poder agradecer o Criador, por este vir ao mundo em carne humana, abrindo aos homens a porta da plenitude.
A oração é antecedida pela antífona de entrada, baseada na profecia de Isaías:
Um menino nasceu para nós: um filho nos foi dado! O poder repousa nos seus ombros. Ele será chamado “mensageiro do conselho de Deus” (Is 9,6)
A leitura da antiga profecia nos recorda que na humildade de um recém-nascido repousa o poder de Deus. Mais ainda: este menino “nasceu para nós”. Seu nascimento está no projeto da salvação. A vinda do menino possui destinatários: todos nós, humanidade ferida, marcada pelo pecado e pela divisão, fragilizada diante do tentador, sedenta do auxílio divino. Com a Encarnação de Jesus, Deus se faz homem e inicia o ponto alto da história da salvação. O menino nos salva e nos apresenta, como lemos na antífona, uma “mensagem”. Em si mesmo, sem poder articular palavra alguma, o recém-nascido é o mensageiro do rosto verdadeiro de Deus, “imagem do Deus invisível” (Cl 1, 15), que se fez pobre para nos enriquecer (cf. 2 Cor 8, 9). A brilhante intuição de Nosso Pai São Francisco de Assis, ao montar o presépio, faz com que os cristãos em todo o mundo possam se encantar com a simplicidade da vinda do Senhor. A marca de sua primeira vinda, que hoje celebramos, é a humildade, como já recordavam pregadores como Pierre de Blois e São Bernardo de Clervaux.
A oração da coleta recorda que Deus é criador. Mas não somente. Ele é também salvador de sua criação. Ele a criou admiravelmente, mas de modo mais admirável restabeleceu sua dignidade. O teor da presente oração é quase idêntico àquela rezada após a primeira leitura e salmo da Vigília Pascal (Gn 1, 1 – 2,2 e Sl 104, respectivamente). O uso da palavra “dignidade”, entretanto, faz eco a um dos sermões de Natal do Papa São Leão Magno (cf. PL 54, 192-193), e vem ao encontro da noção de redenção. O homem além de criado por Deus à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 27) é redimido pelo amor do Filho, em seu sacrifício pascal. Sua dignidade é inigualável, superior à dos anjos. É nesta antropologia profundamente bíblica que se baseiam os cristãos na defesa intransigente da vida e da dignidade humanas, em todas as suas dimensões.
Ao colocarmos o Natal em paralelo com a Páscoa, torna-se evidente que nossa salvação já começa na Encarnação. É um mesmo o Senhor que nos amou até o fim (cf. Jo 13, 1) e o menino que nos foi dado. Ele só pôde se entregar por nós porque assumiu nossa carne. E não somente nos redimiu, mas nos mostrou o verdadeiro rosto de Deus, que é Amor (cf. 1 Jo 4, 8.16). Segundo Santo Irineu de Lyon, pelo envio do Filho (que não ocorre separadamente àquele do Espírito Santo) conhecemos o braço amoroso do Criador, sua verdade que ilumina nossa vontade. E como é a verdade que nos liberta (cf. Jo 8, 32), toda a existência de Cristo é salvífica, como ensinou Santo Tomás de Aquino. “A mim, ensinou-me tudo”, escreve Fernando Pessoa (sob o pseudônimo de Alberto Caeiro) em seu “Guardador de Rebanhos” VIII, conhecido como “Poema do Menino Jesus”.
Finalmente, pela oração da coleta deste dia, a Igreja faz um audacioso pedido ao Pai: que possamos participar da divindade daquele que se dignou assumir nossa humanidade. Tal oração é feita, de forma silenciosa, pelo sacerdote (padre ou bispo) ao preparar o cálice, no início da liturgia eucarística (a segunda parte da missa, que sucede a liturgia da Palavra). O pedido, repetido a cada Eucaristia, nos recorda a fé da Igreja segundo a qual a Encarnação trouxe à vida humana todas as possibilidades que o pecado lhe havia tirado. A vida em Cristo não diminui, mas, ao contrário, eleva o ser humano ao máximo de suas potencialidades. E se esta vida nova, caminho de conversão, nos pede renúncias, é porque é preciso deixar para trás tudo aquilo que nos impede de ir livremente ao encontro do Senhor, por mais enganadoras e pseudo-prazerosas que sejam as formas do pecado.
De certo modo, todas as criaturas já participam da realidade do Criador. Não somos feitos da “substância” de Deus. Ele é totalmente outro. Mas nosso ser tem Nele sua origem e também a base de sua existência. É Ele quem nos cria e que sustenta nossa existência. Mas, além disso, no mistério de Cristo, a liberdade de cada homem, iluminada pela verdade do Evangelho, pode se abrir para a restauração em si da “semelhança” com Deus perdida. Viver o Evangelho, a cada dia, crescendo progressivamente nesta via, é configurar-se ao Cristo. E quem o faz, torna-se como Deus. É em Cristo, como já dissemos no início, que vislumbramos a imagem do Deus invisível. Vivendo seu Evangelho, na docilidade ao Espírito Santo, nosso rosto se torna como o de Cristo, imagem de Deus.
Padre Jean Lafrance, escritor canadense, possui uma bela intuição neste sentido: o Pai só ouve as orações de seu Filho. A oração, na força do Espírito, transforma nosso rosto naquele do Filho. Assim, quando o Pai ouvir nossa oração, ele a atenderá, pois verá em nosso rosto aquele do seu próprio Filho.
Feliz Natal.
Frei André Tavares OP
Couvent Saint-Jacques (Paris)