30° Domingo do Tempo Comum

“Onde encontramos o referencial para viver com intensidade a força do amor?”

Quando as religiões esquecem o essencial, facilmente se adentram por caminhos de mediocridade piedosa ou de casuística moral, que não só incapacitam para uma sã relação com Deus, mas podem até prejudicar gravemente as pessoas. Nenhuma religião escapa deste risco. A liturgia de hoje, e, de modo particular o evangelho, de forma clara e inquestionável, afirma o que é central na vida cristã, para que não se caia na armadilha de certo puritanismo legalista: o amor está no centro da experiência cristã. A tradicional catequese católica, durante um bom tempo, centrou-se mais nos “dez mandamentos” (Decálogo) que nas “Bem-Aventuranças”. Digamos que o cristianismo, se propõem a ser um caminho de bem-aventurança ou santidade mediante uma vida de seguimento do mestre Jesus, mais que um código ou mandamento a ser seguido. Ao longo do tempos, o Evangelho – centro da sua pregação – foi sendo considerado de modos distintos em contextos históricos plurais. Em algum ou outro momento da história, esta realidade “evangélica” que toca o coração das pessoas, foi sendo substituído por um determinado conjunto de normas ou leis que nem sempre exprimiram a vitalidade da vida interior dada pelo Espírito no coração dos fieis. Às vezes a nossa vida cristã tende a se tornar mais um “receituário” de boa conduta que uma vida movida pelo Espírito e o Amor transformador. As leituras hoje querem nos ajudar a discernir qual é o centro de realização do nosso caminho de fé. 

         O Evangelho (Mt 22,34-40) diz-nos, de forma clara e inquestionável, que toda a revelação de Deus se resume no amor – amor a Deus e amor aos irmãos. Os dois mandamentos não podem separar-se: “amar a Deus” é cumprir a sua vontade e estabelecer com os irmãos relações de amor, de solidariedade, de partilha, de serviço, até ao dom total da vida. Tudo o resto é explicação, desenvolvimento, aplicação à vida prática dessas duas coordenadas fundamentais da vida cristã. Mas qual o é pano de fundo do evangelho de hoje? Durante os últimos domingos, vimos que Jesus foi vítima de diversos tipos de armadilhas. O texto de hoje contínua esta “arapuca” perigosa contra Jesus. Um grupo de fariseus lhe propõe uma pergunta capciosa e bem perigosa: “Qual é o maior mandamento da lei?”. No tempo de Jesus tinha uma acirrada discussão sobre qual seria o maior mandamento. Os contemporâneos de Jesus não tinham mais uma visão clara do que constituía o núcleo de sua religião. Na verdade, no Antigo Testamento, havia 613 mandamentos, sendo 365 proibições e o restante proibições. Se hoje temos dificuldade em guardar dez mandamentos, imaginemos no tempo antigo até o de Jesus! Jesus, diante desta sagaz armadilha feita em forma de pergunta, não titubeia em afirmar que o maior mandamento é amar a Deus de todo coração, de toda a nossa alma e de todo o nosso entendimento; amá-lo totalmente com todas a nossas potencialidades será sempre o desafio do ser humano, bombardeado por falsas ilusões e amores passageiros (“paixonites” comprometedoras). Para que o amor seja completo é necessário, segundo Jesus, amar ao próximo como a si mesmo. De fato, compreende-se o por que São João diz que “não podemos amar a Deus que não o vemos, se não amamos o nosso irmão que vemos”. Há pessoas que frequentam a missa religiosamente, mas são incapazes de ter um gesto de solidariedade com o próximo. Há pessoas que vão se tornando indiferentes para com os outros... cumprem muitos deveres sagrados mas são insensíveis ou desequilibrados para com o próximo. Estas pessoas (talvez eu e você mesmo que me lê), somos tão condicionados em viver mais leis ou “receituários” morais, que não nos damos mais o luxo de captar o que é o essencial na vida. Ouço pessoas que assim dizem: “Adianta ir a Igreja e maltratar as pessoas? Adianta rezar a Deus e ser ruim fora da Igreja”? Estas pessoas não estão totalmente erradas; conseguem captar bem certa “distonia” entre o ideal e o real, contudo, também não podem se justificar ou se inocentar no exemplo dos outros; cada um é chamado a “amar com toda a força do ser a Deus” para que esta se transforme em força para amar o próprio irmão, principalmente em momentos “desprazerosos”. Se amamos a Deus acima de tudo encontraremos na “religião” uma forma de “re-ligar” com o essencial em si, nos outros e no absoluto. Do contrário, passaremos a vida repetindo, como os fariseus, a pergunta ao “Mestre”: “Qual é o maior dos mandamentos?”. Jesus, na verdade, quer tanto superar certa mentalidade “legalista” centrada em uma prática externa, sem vigor interior, mas também, propor que o novo Reino que Ele mesmo anuncia exige sempre um “ir além das próprias forças”: confiar na graça do amor de Deus, seu Pai. Todos necessitamos diariamente crescer em intensidade e amor profundo. Do contrário, seremos sempre superficiais. Este evangelho de hoje propicia-nos também a pensar no seguinte: fazemos muitas coisas na vida. Movemo-nos e corremos atrás de muitos objetivos. O que é verdadeiramente importante, o que se deve fazer na vida para acertar e não ficar no vazio?

         A primeira leitura (Ex 22,20-26) garante-nos que Deus não aceita a perpetuação de situações intoleráveis de injustiça, de arbitrariedade, de opressão, de desrespeito pelos direitos e pela dignidade dos mais pobres e dos mais débeis. A título de exemplo, a leitura fala da situação dos estrangeiros, dos órfãos, das viúvas e dos pobres vítimas da especulação dos usurários: qualquer injustiça ou arbitrariedade praticada contra um irmão mais pobre ou mais débil é um crime grave contra Deus, que nos afasta da comunhão com Deus e nos coloca fora da órbita da Aliança. O livro do Êxodo é o livro da “saída”; saída do conformismo, saída do egoísmo, saída de uma visão mesquinha das coisas; no caso, Deus quer que saíamos (deixemos) um olhar arrogante e tenhamos um olhar como o dele; Ele sempre olha – como é comum no Antigo Testamento – para a classe social mais vulnerável (viúvas, órfãos e pobres) com total amor. Talvez hoje nos achamos os mais “carentes” ou mais “necessitados” de Deus, mas temos que nos lembrar que há outras pessoas que estão mais distantes e em condição de fragilidade que nós.     

         A segunda leitura (1Ts 1,5-10) apresenta-nos o exemplo de uma comunidade cristã (da cidade grega de Tessalônica) que, apesar da hostilidade e da perseguição, aprendeu a percorrer, com Cristo e com Paulo, o caminho do amor e do dom da vida; e esse percurso – cumprido na alegria e na dor – tornou-se semente de fé e de amor, que deu frutos em outras comunidades cristãs do mundo grego. Dessa experiência comum, nasceu uma imensa família de irmãos, unida à volta do Evangelho e espalhada por todo o mundo grego. Paulo elogia esta comunidade, pela sua constante demonstração concreta de amor a Deus e ao próximo.
Somos chamados hoje a inverter a questão proposta pelos fariseus. A questão deve se colocar assim hoje: “Onde buscamos a força, a intensidade e a profundidade do para colocar o essencial – o amor a Deus e ao próximo, como a si mesmo – acima de todas as coisas, ambições e interesses ? Em nossas comunidades amamos mais o que?”
Fr. André Boccato, OP