XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM 17-07-2016

REFLEXÃO HOMILÉTICA PARA O EVANGELHO DO DIA (17 DE JULHO DO ANO DO SENHOR DE 2016, XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM, ANO C)

Lc 10, 38-42

 

MATEUS DOMINGUES DA SILVA OP*

 

             Muitas leituras e interpretações são possíveis do relato evangélico do 16o domingo do tempo comum, ano C, e que apenas o evangelista Lucas conhece e apresenta. À título de exemplo: João Eckhart, frade dominicano, filósofo de primeira grandeza e ilustre pregador do começo do século XIV, no  Sermão IX da edição Pfeiffer inverte a opinião comum sobre a superioridade de Maria sobre Marta para alertar as monjas contra a tentação dos prazeres espirituais. O seu gênio fê-lo sair dos carreiros batidos para abrir as consciências de uma maneira nova à verdade antiga. Há quem fale do “método de choque” de Eckhart. Nesse sermão, Eckhart louva Marta e apresenta a mesma Marta como paradigma de fiel, porque não apenas une-se à divindade em seu ser, como a frutifica em seus afazeres. Mestre Eckhart nomeia tal estado supremo da alma como “mulher”, isto é, fecundo por princípio, capaz de engendrar em todas as obras a centelha divina. Eckhart está completamente certo; não obstante, outras leituras são possíveis – e tenho a minha. No relato evangélico proclamado hoje, a meu ver, Jesus enquanto hóspede é apresentado; sua identidade como hóspede transforma a história narrada em um encontro exemplar, na qual duas maneiras de hospedar e receber Jesus são colocadas em paralelo. Jesus acabou por se tornar, graças às circusntâncias, uma espécie de juíz entre as duas irmãs: o que se deve escolher entre fazer e escutar?... Marta escolheu o quantitativo (muitas coisas); Maria escolheu uma única coisa. No entanto, é somente de uma única coisa que se efetivamente precisa... Portanto, entre Marta e Maria, não há uma oposição entre uma boa escolha e outra ruim, ou entre uma boa escolha e outra que seria melhor. Na verdade, as duas irmãs são convidadas a uma única opção, aquela de Maria.

 

                E por que a opção de Maria? Jesus está de passagem. Trata-se do caminho para Jerusalém, o caminho que leva à morte; nesse percurso, Jesus para e repousa por algumas horas e esta parada torna-se, para o evangelista Lucas, a oportunidade de opor duas maneiras de receber o hóspede Jesus. Marta se centra na dimensão quantitativa, material, concreta, objetiva. Poderia dizer que toma posse de Jesus por suas iniciativas e seus trabalhos; ela invade Jesus e tenta controlá-lo. E quantas vezes não fazemos o mesmo? Quando algum cristão deixa sua condição de “servo inútil” e passa a acreditar que ele é o “salvador dos homens”, que sem ele não haverá mais nem Igreja nem Reino de Deus, quando se esquece que a salvação é dom e graça, é 100% gratuita e gratuidade, ele se torna surdo e indiferente frente a palavra de Jesus. Quando um discípulo se imagina maior que o mestre, há algo que está confuso… Maria, em vez disso, é mais objetiva e realista que Marta, pois ela se apega à única realidade que permanecerá quando Jesus partir em seu caminho rumo à cruz. Se isso estiver correto, pode-se tornar mais evidente a explicação desta estranha fórmula: “[ela] escutava a sua palavra” (Lc 10,39). Quando Jesus for crucificado e exaltado junto ao Pai, para Marta, que fez a escolha errada, não restará nada. Para Maria, no entanto, continuará viva e presente a palavra de Jesus: a única coisa que não pode ser tirada dela.

 

             Ademais, a narração que temos hoje pode surpreender nossos contemporâneos: "enquanto ele estava a caminho (Jerusalém) com seus discípulos, “Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa.” "(Lc 10,38). Em Lucas, é a Igreja a casa que hospeda; o chefe da casa, isto é, da Igreja, é uma mulher. Outrossim, esta mulher exerce um ministério, o da diaconia: "Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres." (Lc 10, 40A). O que significa que, na concepção de Lucas, na Igreja, uma mulher pode se ocupar dos afazeres, isto é, do serviço da mesa, exercendo o ministério do diaconato. Espero que em breve se possa ordenar, na Igreja católica-romana, mulheres chamadas pelo Cristo para o serviço, para o diaconato, assim como foram Marta e muitas outras mulheres nas origens cristãs. 

 

              O evangelista Lucas nos narra primeiramente que Jesus não hesitou em entrar em uma casa habitada por duas mulheres. Dessa maneira, para o evangelista, tanto as mulheres como os homens têm acesso ao Evangelho de Jesus e o próprio Jesus não está preso a nenhum cliché machista e a nenhuma convenção patriarcal e misógina. Ainda mais, se levarmos a sério as palavras do evangelista, descobre-se que Maria está sentada aos pés de Jesus, escutando a sua palavra. Esta atitude de Maria atende exatamente a definição dada para o discípulo: o discípulo é aquele que está sentado aos pés do mestre. Jesus, portanto, considera Maria uma discípula. Ele aceita Maria como discípula, em uma função e uma vocação de discipulado. Lucas escreve que Jesus também transmitiu para ela a palavra de Deus: ela ouvia sua palavra... Jesus vê que Maria é capaz de teologia, de pregação, de fé. A mulher cristã não é um discípulo de segundo escalão; nos Evangelhos, Maria é o exemplo de quem ouve a palavra – outra mulher e outra Maria (talvez a mesma?), chamada Madalena, também é o exemplo de pregadora. Eckhart tem toda razão em chamar o “estado supremo da alma” de “mulher”. Isso significa que, para Lucas, as responsabilidades na Igreja não são reservadas somente para homens, mas as mulheres participam também ativamente. Nada mais justo, pois o Cristo dos evangelhos não faz distinção entre pessoas. O evangelho segundo Lucas reflete o feminismo do próprio Lucas e continua a desafiar a Igreja catóica-romana e todas as denominações cristãs: a mulher não pode ser relegada a tarefas domésticas. As mulheres não são apenas Marta, não são apenas mão-de-obra, elas também são capazes de ser Maria, ou seja, ser discípulas, apóstolas, capazes de escutar e pregar a palavra de Deus, capazes de dirigir e de organizar a Igreja. Nos aspectos civis, para além da religião, a mulher é capaz de tudo – mesmo de ser presidenta da República e, injustamente, ser destituída e vítima de golpe. A melhor parte não é proibida nem para Maria nem para Marta nem para nenhuma mulher.

 

Por que até hoje não levamos Lucas a sério?

 

 

*MATEUS DOMINGUES DA SILVA É FRADE DOMINICANO E ISLAMÓLOGO; PESQUISADOR DE HISTÓRIA DA FÍSICA MEDIEVAL E DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA ÁRABE, É MEMBRO DO IDÉO (INSTITUT DOMINICAIN D’ÉTUDES ORIENTALES) DO CAIRO.