XVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM 31-07-2016

“A vida é dom de Deus não do ter e sim do ser”

 

                      Uma tradicional canção religiosa nos vem à mente, ao contemplarmos a mesa da palavra deste 18º domingo do tempo comum: “o Povo de Deus era rico de nada: só tinha esperança e o pó da estrada”. E mais importante ainda: “também sou teu povo, Senhor! E estou nesta estrada. Somente a tua graça me basta e mais nada!”

                     Aparentemente iniciada por uma visão pessimista que marca todo o livro do Eclesiastes (1,2), “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, recordamos ao refletirmos a Palavra deste domingo, um grande estudioso, exegeta dominicano, que até há pouco tempo esteve em nosso meio: frei Gilberto Gorgulho, OP. De modo eloquente, com sua voz anasalada, advertia-nos: “não se trata de uma visão pessimista acerca do ser humano. Porém, de uma visão bastante realista”.

                          Por meio do Eclesiastes, desde o início, somos chamados pelo Senhor a vivermos o essencial da vida humana: a graça de Deus que nos faz despojarmos do supérfluo, e de desejos que simplesmente copiam o secundário, que tanto gera, em nós, ambiguidades, desvios e desilusões. Na liturgia deste domingo, Deus se revela como o doador de toda a graça. E graça maior não há, senão, o próprio Deus que se dá a nós e nos dá o dom da vida.

                     Assim, o Divino Mestre nos diz: “tomai cuidado com todo o tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens” (Lc12, 15). Logo, somos postos diante do nosso essencial: a vida em abundância. Não dos bens que abundam.

              O desejo de possuir muitos bens gera a corrupção em nós. Quando não satisfeito, provocará a tristeza. Já dizia o místico dominicano, Mestre Eckhart, em seu tratado “Da Divina Consolação”, que o desejo é a fonte de nossos males. Não deveríamos desejar nada e pedir somente o próprio Deus.

                   Esta visão de Deus pode, por um lado, nos levar a uma visão conformista e fazer que cruzemos os braços ao trabalho. Infelizmente, já no tempo dos discípulos do Apóstolo Paulo, algumas pessoas eximiam-se da responsabilidade do trabalho e de ganhar o sustento cotidiano: encostavam-se nos outros. Foi, por esta razão, preciso advertir aos tessalonicenses: quem não trabalha, não deve comer( II Ts 3,10). Por outro, quando nos deparamos com tanta miséria, alguém pode nos questionar se Deus não olha por aqueles que passam tantas dificuldades. A resposta acerca dos duros problemas hodiernos acerca da sobrevivência não está diretamente implicando Deus. O problema reside em que, movidos por ambições (Lc 12,18), deixamos o Cristo de lado. Ele é quem nos ensina o amor universal. E então, criamos falsas necessidades e vamos repetindo desejos e costumes que nos levam ao acúmulo de coisas, à concentração de bens. É o chamado desejo mimético (de mímesis) que quer dizer: desejo repetitivo, copiado. Abertos a esta sedução, nos tornamos presas fáceis da sociedade de consumo, que por meio de nossa fraqueza e uso de grandes técnicas de marketing, nos oferece tantos produtos que passamos a pensar que nós valemos pelo que temos e não pelo que somos e vivemos. Aí sim, cresce em nós a vaidade do ter ou a frustração do não ter,  na proporção que se apequena nossa felicidade.

                      O filósofo Maurice Blondel explicitou que não é possível saciar um desejo infinito, como o desejo da felicidade, da vida com bens finitos. Tamanho desejo somente pode ser saciado com um bem infinito, que a fé cristã nos revela que é o próprio Deus em nós (Cl 3,10). A vida de Cristo em nós, faz de nós o “homem novo”. É neste sentido que o banquete da Palavra nos traz um caminho que sacia nossa fome. A fome de beleza, com a presença e confiança em Deus que nos dá a graça e sendo graça, logo, mesmo redundantemente, mas para tornar peremptório o conceito (graça) é de graça (gratuito). E também nos sacia a fome de pão.

Este dom divino implica também, decididamente, olharmos neste tempo de tanta valorização de bens materiais, o quanto há de estímulo do consumo, concentração e desperdício. Vivemos num planeta esgotado pelo acúmulo desmedido. Para que tanto “celeiro” acumulando, se há tanta gente passando fome?

                        Inúmeras vezes a mídia, que é alimentada pelo mercado, nos traz notícias de que a solução para a fome seria o simples aumento da capacidade produtiva do planeta. Como se, controlemos a natalidade e aumentemos a produção, daremos fim à miséria. Entretanto, organismos internacionais, credíveis, afirmam que tanto já temos a produção necessária para alimentar toda a população mundial, quanto o planeta também já está cansado, esgotado por uma superprodução mal administrada e sobretudo mal distribuída.

                      Bastaria na verdade, admitirmos que a vida é um dom de Deus, que ela sim é o bem maior de igual valor, em conformidade com as leituras de hoje, e termos a coragem de diminuir o tamanho de nossos armazéns e a ambição de nossos lucros, para compartilharmos humanidade, produção e vida. Daí, então, prolongarmos em quantidade e qualidade da vida na terra. Deixarmos, na linguagem do evangelho de hoje, de sermos “insensatos” ou mesmo insanos: como pode a humanidade queimar alimento de estoque regulador de preços dos governos, enquanto há uma parcela da humanidade que morre de fome. Parte da humanidade que ainda nem faz parte do mercado de alimentos não poderiam ser alimentada pelos alimentos que seriam queimados?! A queima de alimento dos estoques reguladores deveria ser reconhecida como um escândalo contra a humanidade num mundo em que tantos seres humanos ainda morrem de fome.

                Urge tomarmos consciência que a vida é um dom de Deus. E assim, educarmo-nos a partilharmos da mesma mesa, na consciência de estarmos em comunhão num mesmo ser: o ser humano. Ouvindo o Senhor hoje, seríamos tanto mais racionais, quanto mais humanos.

                    Rezemos assim, a mesa da Palavra com o Mestre Eckart: “Senhor, não vos peço nada. Somente vos peço que Vós vos dais a mim”. Ou nos termos de nossa canção: “somente a tua graça, me basta e mais nada!”

 

Por frei Helton Barbosa Damiani, OP

Mestre de Noviços,

vigário da Paróquia São Domingos,

 em Uberaba